(Foto: Reprodução) Donald Trump abandonou sua retórica elogiosa do primeiro mandato e passou a propor a anexação do Canadá aos Estados Unidos. Quais são suas reais intenções em relação ao país vizinho, aliado há mais de um século? Durante visita do então primeiro-ministro canadense Justin Trudeau aos EUA no seu primeiro mandato, Donald Trump destacou os 'laços especiais' entre as duas nações, que 'compartilham muito mais que uma fronteira'. O que mudou desde então?
Reuters
A ilha Machias Seal é um ponto minúsculo no mapa da América do Norte. A importância daquele pedaço de rocha coberto pela neblina vem da sua localização.
✅ Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsApp
Ela fica em uma área conhecida como "Zona Cinzenta" – o local de uma rara disputa internacional entre o Canadá e os Estados Unidos. Ali, o Estado americano do Maine encontra a província canadense de Nova Brunswick.
Os dois vizinhos e aliados de longa data reivindicam há muito tempo a ilha e as águas à sua volta. E, com a disputa, vem o direito de pescar e vender as valiosas lagostas da região.
Veja também
O pescador de lagostas americano John Drouin trabalha na Zona Cinzenta há 30 anos. Ele conta a corrida desenfreada entre os pescadores canadenses e americanos para instalar armadilhas para lagostas no início da temporada de verão, todos os anos.
"As pessoas literalmente perdem partes do seu corpo, sofrem concussões, esmagam a cabeça e muito mais", afirma ele.
Estas lesões ocorrem quando os pescadores de lagostas ficam presos nas linhas uns dos outros.
Drouin conta que um de seus amigos perdeu o polegar ao ficar preso em uma linha canadense, o que ele chama de cicatriz de batalha na Zona Cinzenta.
O Canadá e os Estados Unidos disputam a soberania da chamada 'Zona Cinzenta' desde o século 18
BBC
Os 717 km² de mar em torno da ilha Machias Seal estão em disputa desde o final do século 18. E, em 1984, um tribunal internacional concedeu aos dois países, Canadá e Estados Unidos, o direito à pesca nas suas águas.
A região manteve sua peculiaridade até hoje – uma área de tensão isolada no que havia sido, até agora, uma relação próxima entre os dois países.
Mas tudo isso pode estar a ponto de mudar.
A volta à Casa Branca do presidente americano Donald Trump, as altas tarifas sobre a importação de produtos canadenses e a retórica sobre fazer do país vizinho o 51º Estado americano geraram uma série de novos focos de conflito. E existe a possibilidade de que, em última análise, Trump deseje subjugar o Canadá aos Estados Unidos, passando por cima de tudo.
Em meio à maior mudança no relacionamento entre os dois países nas últimas décadas, fica a questão: o que Trump realmente quer do Canadá?
Guerra comercial entre Canadá e EUA: canadenses boicotam produtos americanos
A guerra da lagosta
Cutler, no Estado americano do Maine, é a cidade dos Estados Unidos mais próxima da Zona Cinzenta. Ela abriga um grupo de residências espalhadas, um armazém e, é claro, um atacadista de lagostas.
Ao lado dos turistas e de alguns aposentados da cidade grande, Cutler deve sua própria existência aos abundantes crustáceos que habitam as águas do litoral.
E, para os pescadores da cidade, o limbo internacional da Zona Cinzenta é sua realidade diária. Eles espalham suas armadilhas no fundo do golfo do Maine para capturar as valiosas lagostas e levá-las ao mercado.
Durante a temporada da lagosta, a Zona Cinzenta fica repleta de barcos e boias que marcam a localização das suas armadilhas. E, quando as águas ficam repletas e o sustento é ameaçado, os perigos aumentam.
A Guarda Costeira canadense presta serviços de manutenção do farol da ilha Machias Seal
Getty Images/BBC
"Nós gostamos disso? Nem um pouco", afirma Drouin. Ele pesca lagostas na Zona Cinzenta há 30 anos. "Vou continuar reclamando até parar de respirar."
Nick Lemieux, outro pescador de lagostas de Maine, conta que ele e seus filhos tiveram cerca de 200 armadilhas roubadas nos últimos anos. Ele culpa seus concorrentes do norte.
"Esta é a nossa área e é tudo o que temos para trabalhar", explica ele. "Este tipo de coisas não cai muito bem conosco."
Os americanos acusam os canadenses de adotar regulamentações diferentes, mais flexíveis, que permitem a eles capturar lagostas maiores.
Já os canadenses afirmam que os americanos têm limites de pesca maiores e trabalham clandestinamente nas suas águas territoriais.
O sindicato que representa os agentes de pesca do Canadá afirmou recentemente que os americanos reagiram às suas medidas de manutenção da ordem com ameaças de violência. Desde então, alguns agentes se recusam a trabalhar na Zona Cinzenta.
O farol da ilha Machias Seal mantém faroleiros no local o ano inteiro. Mas a Guarda Costeira Canadense envia assistência técnica adicional quando há problemas com o suporte automático à navegação.
E os Estados Unidos mencionam os fuzileiros navais americanos que ocuparam a ilha durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) como prova da sua soberania sobre o local.
Diversas disputas de fronteiras
Esta disputa parece não levar a lugar nenhum. Mas, durante o primeiro mandato de Donald Trump (2017-2021), os eventos verificados na Zona Cinzenta não pareciam influenciar muito as relações cordiais então existentes entre os Estados Unidos e o Canadá.
Quando Trump recebeu o então primeiro-ministro canadense Justin Trudeau na Casa Branca, em 2017, ele falou sobre as relações entre os dois países em termos radiantes, destacando os "laços especiais" entre as duas nações, que "compartilham muito mais que uma fronteira".
Mas sua retórica mudou completamente desde então.
Em março, os Estados Unidos passaram a fazer controle de imigração dos canadenses que visitam a Ópera e Biblioteca Livre Haskell, que fica na fronteira entre os dois países
Reuters
Nos últimos meses, Trump chamou repetidamente o Canadá de "51º Estado" americano. E a Casa Branca expressou a disposição de abrir novas áreas de disputa ao longo da fronteira entre os dois países.
Em setembro, o presidente americano anunciou projetos sobre águas canadenses na Colúmbia Britânica, no oeste do país. Ele sugeriu que aquela água poderia ser bombeada para a o Estado americano da Califórnia, assolado pela seca.
"Você tem milhões de litros de água sendo despejados do norte... basicamente, eles têm uma torneira enorme", declarou Trump.
A cerca de 2,4 mil quilômetros a leste dali, os Grandes Lagos poderão passar a ser outro local de possíveis conflitos. Autoridades americanas informaram seus colegas canadenses que estão analisando a retirada dos tratados sobre a regulamentação ambiental coordenada da região.
E, ainda mais a leste, uma biblioteca se tornou um improvável cenário de conflitos.
Criada deliberadamente na fronteira entre o Estado americano de Vermont e a província canadense de Quebec como um símbolo da cooperação entre os vizinhos, a Ópera e Biblioteca Livre Haskell costumava ficar aberta para os moradores dos dois países.
Mas, no mês de março, os Estados Unidos mudaram as regras de visitação. Agora, os canadenses precisam passar pelo controle de imigração para terem acesso ao edifício.
O Departamento de Segurança Doméstica dos Estados Unidos afirma que a medida foi tomada em resposta ao tráfico de drogas.
Batalha por recursos naturais
Outra fonte de disputa são os recursos naturais.
O Canadá detém imensas reservas de terras raras, ouro, petróleo, carvão e madeira – o tipo de riqueza natural que Trump sempre valorizou.
O presidente americano rejeitou alimentar qualquer desejo pela madeira, reservas de energia ou produtos manufaturados do Canadá. Mas, em fevereiro, Trudeau teria dito a portas fechadas, em uma reunião com líderes trabalhistas e empresariais do Canadá, que sua visão a este respeito era diferente.
"Prevejo que não só o governo Trump sabe quantos minerais fundamentais nós temos, como este pode até ser o motivo que os leva a falar continuamente em nos absorver e nos transformar no 51º Estado", teria dito Trudeau, segundo a rede de rádio e TV pública canadense CBC.
"Eles conhecem muito bem nossos recursos, o que temos e querem muito tirar benefício deles."
O jornalista canadense Jordan Heath-Rawlings apresenta o podcast The Big Story. Ele acredita que Trump quer os recursos canadenses e que os comentários do presidente americano sobre a anexação do Canadá devem ser levados a sério.
Para Heath-Rawlings, "ele gosta da ideia de ser o 'cara' que irá trazer uma enorme massa de terra. Ele provavelmente quer o Ártico, que obviamente se tornará muito mais valioso nos próximos anos."
Os canadenses começaram a boicotar produtos americanos e cancelar viagens de férias para o país vizinho
Reuters
Trump já declarou que suspeita até da fronteira entre os dois países.
"Se você olhar para o mapa, eles traçaram uma linha artificial através dele, entre o Canadá e os Estados Unidos", disse ele em março. "Alguém fez isso muito tempo atrás e não faz sentido."
É claro que os comentários de Trump irritaram os líderes canadenses. Eles alertam sobre os recentes projetos do presidente americano em relação ao seu país.
Em março, Trudeau acusou Donald Trump de planejar o "total colapso da economia canadense, para facilitar nossa anexação".
No mês anterior, depois que Trump anunciou pela primeira vez suas novas tarifas de importação sobre os produtos canadenses, Trudeau declarou que ele "tem em mente que uma das formas mais fáceis de fazer isso [anexar o Canadá] é absorver nosso país. E é algo real."
Caso as ambições territoriais para o Canadá, de fato, sejam "algo real", surge uma pergunta simples e vexatória: por quê?
Por que os Estados Unidos, que mantém laços diplomáticos, militares, econômicos e culturais tão estreitos com seu vizinho do norte há mais de um século, colocariam tudo isso em risco?
Exceção e não a norma
Há quem veja um padrão entre os projetos de Trump em relação ao Canadá, à Groenlândia e ao Canal do Panamá. Eles refletem uma mudança dramática da forma em que os Estados Unidos veem sua posição no mundo.
Esta postura vem sendo articulada principalmente pelo secretário de Estado americano, Marco Rubio. Em janeiro, ele declarou que a dominação americana após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi mais a exceção do que a norma.
"Em algum momento, você retornaria a um ponto em que você teria um mundo multipolarizado, com diversas grandes potências em diferentes partes do planeta", afirmou ele. "Enfrentamos isso agora com a China e, até certo ponto, com a Rússia... e Estados mal intencionados, como o Irã e a Coreia do Norte."
Para o professor de assuntos internacionais Michael Williams, da Universidade de Ottawa, no Canadá, se o atual governo Trump achar que a dominação americana do planeta não é mais possível ou mesmo desejada, os Estados Unidos poderão se retirar de conflitos distantes e dos seus compromissos com a Europa.
Em vez disso, Williams acredita que o país passaria a priorizar seu "núcleo territorial", criando uma espécie de fortaleza continental, isolada dos dois lados pela vastidão do Oceano Pacífico e do Atlântico.
"Se este for seu plano, você tentará controlar os principais pontos de estrangulamento", explica o professor. "Você irá maximizar o acesso aos recursos naturais, que são abundantes no Canadá, e trazer a indústria de volta ao país sempre que possível."
Para o primeiro-ministro canadense Mark Carney, 'o antigo relacionamento que tínhamos com os Estados Unidos terminou'
Reuters
Esta visão geopolítica não é nova.
Na década de 1820, o então presidente americano James Monroe (1758-1831) articulou uma ordem global, que confinava a América e a Europa aos seus próprios hemisférios.
Mas a visão atual representa uma sensível mudança da política externa americana, adotada desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Plano ou capricho?
Williams reconhece que é difícil imaginar exatamente qual é o pensamento do presidente americano.
John Bolton foi consultor de segurança nacional de Trump por mais de um ano, durante o primeiro mandato do presidente. Ele endossa totalmente esta visão.
"Trump não tem filosofia", segundo ele. "Ele tem ideias, mas não segue um padrão coerente. Não há uma estratégia básica."
Para Bolton, o presidente se concentra atualmente nos minerais e recursos naturais. Mas ele defende que a melhor forma de tratar da questão é através do setor privado, não ventilando a ideia de anexar um aliado.
Já o Canadá se ofereceu para trabalhar com empresas americanas, em parcerias de mineração conjunta.
Williams e Bolton concordam que, independentemente das motivações por trás dos projetos de Trump sobre o Canadá, os danos diplomáticos causados dificilmente serão desfeitos – e existe grande possibilidade de consequências imprevistas.
Boicotes e cancelamento de viagens
"Trump gosta de dizer, em muitos contextos, que outras pessoas não têm cartas na mão", segundo Michael Williams.
"Mas, quanto mais você coloca as pessoas contra a parede, mais você percebe que elas têm cartas que você não sabia que elas tinham – e podem estar dispostas a jogar."
"E, mesmo se você tiver mais cartas, as consequências podem facilmente sair de controle, com consequências muito sérias", explica o professor.
Os canadenses já começaram a boicotar produtos americanos e cancelar viagens de inverno para o sul do continente, prejudicando comunidades turísticas no Estado americano da Flórida.
"Não estamos procurando briga, mas o Canadá está pronto para ela", afirma Heath-Rawlings.
O novo primeiro-ministro canadense, Mark Carney, defende a ideia de que houve um rompimento da confiança entre os Estados Unidos e o Canadá, à medida que se aproximam as eleições gerais do país, marcadas para 28 de abril.
"O antigo relacionamento que tínhamos com os Estados Unidos, baseado no aprofundamento da integração das nossas economias e na estreita cooperação militar e de segurança, terminou", declarou ele, recentemente. "Rejeito qualquer tentativa de enfraquecer o Canadá, de nos desgastar, de nos destruir para permitir que a América tome posse de nós."
No século 19, os conflitos e crises territoriais ao longo da fronteira entre o Canadá e os Estados Unidos eram mais frequentes.
Os americanos realizaram diversas tentativas fracassadas de conquistar território canadense durante a Guerra de 1812.
Em 1844, alguns americanos pediram a convocação de forças militares se o Reino Unido não concordasse com suas reivindicações no noroeste do Pacífico.
E a "disputa do porco", em 1859, envolveu ilhas contestadas perto de Vancouver, no Canadá – e o infeliz disparo de um leitão britânico que havia invadido o jardim de um americano.
Tudo isso parecia tema de livros de história velhos e empoeirados. A Zona Cinzenta era uma singularidade diplomática, uma exceção a uma regra de paz no mundo moderno, com democracias desenvolvidas e integradas.
Mas aquela calmaria, agora, foi interrompida. E ninguém sabe ao certo para onde estas águas tempestuosas irão levar cada um dos dois países.